Os Orixás de Carybé
Carybé foi um artista gráfico argentino radicado no Brasil no início
do século passado. Rendeu-se ao imaginário latino americano e por isso
mesmo, foi um dos artistas que melhor o expressou. Ilustrou grandes
clássicos de Jorge Amado e Gabriel García Marques, entre outros
trabalhos de apurada expressão estética. Neste ensaio, recria os Orixás
do Candomblé que tanto testemunhou na Bahia, terra em que viveu e vive,
por toda parte, até hoje.
O Sacrifício
Extraído d’O Livro das Ilusões, de Emil Cioran
Cada vez mais estou convencido de que o
heroísmo tem suas raízes no desespero. Fracassamos na vida por
desespero; mas ele não nos leva a fracassar na morte. O Sacrifício, só o
sacrifício, salva a nossa carne e só ele resgata uma vida. A
partir do momento em que a vida não é pura, mas infernal e torturante
não é o sacrifício uma sublime aniquilação? Poder morrer pelos outros;
pelo sofrimento dos milhares de seres anônimos, por ima ideia fecunda e
absurda; consumir a vida pelo que não nos concerne, destruir-se generosa
e inutilmente, não é a única forma de renúncia de que somos capazes?
Cada gesto só ganha valor na medida em que parte de uma grande renúncia.
Só a morte dá profundidade aos atos da vida. E, no sacrifício, a vida
se realiza graças à morte.
Se todos os homens para
quem a vida é um bem perdido aprendessem a desperdiçar menos sua morte, o
mundo chegaria a ser uma sinfonia de imolações. Então, graças à morte, a
vida adquiriria um caráter de solene gravidade e de grande renúncia e
sacrifício, tenderia a uma pureza a que aspiram tantos impulsos
desesperados. Todo sacrifício é um protesto contra a falta de pureza da
vida. Por isso só podemos continuar sendo criadores pelo sacrifício.
Passar da renúncia ao
heroísmo! Mas não à indiferente passividade dos sábios. É impossível
para nós a renúncia como um tranquilo e progressivo distanciamento das
coisas, levado até a indiferença total. Não é dos momentos de grande
renúncia, de grande distanciamento, que germina a ideia de nossa própria
missão?
Não podemos falar de
renúncia sem nos mortificarmos, sem nos atormentarmos e sem ficarmos
tristes. A renúncia é para nós um fenômeno infinitamente dramático;
extravasamos nela demasiada energia que continue sendo renúncia; Nos
interessa demasiado o processo psicológico da renúncia para que não
acabe em tragédia. Não renunciamos; queremos renunciar. Por isso não podemos ser outra coisa senão heróis.
Quando Buda fala de
renúncia, é como se nós falássemos do amor. Renunciar com a naturalidade
de uma flor que se fecha ao entardecer; esse é o segredo de uma
renúncia que não podemos realizar nunca, porque colocamos demasiada
paixão nas negações. Não se tornam positivas todas as negações durante
nossos momentos de tensão? Ao destruir tudo é como se criássemos tudo.
Como se estivéssemos em uma fogueira, estalamos de negações. E
consumimos as negações não na dúvida, mas com a certeza de uma missão.
Nós nos desfazemos de tudo para conquistar tudo; nos sacrificamos para
transfigurar a vida; renunciamos para nos afirmar; no desprendimento
último, nosso entusiasmo abraça o mundo. Daí que a liberação permaneça
em nossa consciência como um simples problema. Porque a liberação só se
torna realidade para aqueles que seguem uma única direção no absoluto.
Desprenda-te tudo para tornar-te centro metafísico,
teu único ganho, teu único destino. Que ao perder tudo, esse triunfo
seja para ti motivo de regozijo e nos fracassos descubras raios de luz
para tua auréola. Viva como um mito; esqueça a história; pensa que
contigo não se tortura uma existência, mas a existência; que a matéria o
tempo, e o destino se concentram em uma única expressão; torna-te fonte
de ser e de atualidade na existência. Ao viver como um mito,
tudo que é anônimo na natureza se torna em ti pessoal, e tudo o que é
pessoal, anônimo. Viverás então tudo tão intensamente, que as coisas se
tornarão essências e perderão seu nome. Então poderás renunciar à
tentação do individual; poderás esquecer uma pessoa ou um objeto, então
poderás dar tudo e poderás dar-te a ti por inteiro.
Pergunta moderna a um problema eterno: por acaso não nos atormentará o pesar de nossa renúncia?
Todo o problema da
renúncia: como podemos fazer dela algo que não seja uma perda, como
podemos fazer dela uma forma de amor. Queremos fazer da renúncia algo
positivo. Covardia ou heroísmo moderno?
Quando a renúncia não se
realiza no sacrifício, mas termina em desilusão ou ceticismo, fracassou
uma experiência capital. É como uma negação que não conduz ao êxtase. Só
há uma forma pela qual a renúncia ainda pode chegar a ser fecunda: se
está aberta para a vida. Uma vez rompidos os laços com o mundo,
tenhamos bastante amor para poder, a partir de nosso distanciamento,
abarca-lo todo; situemo-nos infinitamente longe de tudo e infinitamente
perto de tudo; englobemos tudo com uma visão de êxtase. Desta maneira a
renuncia significará um ganho. Nela nossa alma se abrirá para tudo,
porque perdeu tudo. Um amor total e infinito não é possível sem
distanciamento. Só o amor que se realiza individualmente, o único amor
imediato, prescinde desse distanciamento.
Só uma alma dilacerada de
amor ainda pode reabilitar este mundo vulgar, mesquinho e repulsivo. Um
grande amor não existe sem uma grande renúncia. Só podemos ter tudo
quando não tivermos mais nada. As alegrias e as tristezas da renúncia!
Nós nos realizaríamos de forma absoluta se a renúncia fosse apenas
ocasião de alegria. Mas amamos demasiado nossa imperfeição e por isso
nossos amores nos entristecem, Quando aprenderemos a ver no amor algo
mais do que uma perda?
Editora Rocco, Capítulo II, páginas 57, 58 e 59, tradução de José Thomas Brum
Vamos aprender a pôr o crédito do Monomito?
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